Um artigo de BENTO SAMPAIO:
Deveras baralhado com o insólito, apercebi-me que o desgraçado, de mãos atadas, cansado da caminhada, estava rodeado de outra gentalha.
“Tenho sede, tenho fome e tenho medo dos dias e dos vales…”, isso me pareceu ouvir da boca de um homem, alquebrado, sem fala que se lhe ouvisse, sentado numa pedra.
Abeirei-me da criatura, e um semblante sofredor, escorrendo suor farto, dizia bem da sua penosa jornada, de rumo incerto, “quem sois?”, nada me disse, apenas arfava, “claro, estais estafado, bom homem…”, e a resposta do pobretana foi a de menear simplesmente a cabeça – pudera, estava enfraquecido e despojado de si.
Descansava ali numa pedra, depauperado, já se vê, num mero assento que me pareceu ser o contrapeso de um lagar desmantelado. Talvez de alguém que deixara vinha, terra, casa, tudo que tinha, para ir em cata de fortuna fácil nas Américas, pensei.
Mas, ao menos, não teria aquilo que abandonara, um pequeno valor, qualquer coisa que desse para comprar uma pequena casa, para início de vida?
Pois claro, então a terra, pouca que fosse, empoleirada na rocha, a vinha descuidada de anos, o lagar uma boa peça para o museu, nada disso se aproveitaria?
Logo apareceu um outro homem, explicando-me que de nada lhe servia o que os seus de sangue lhe deixaram, “não, meu caro senhor, estou desiludido…”, e eu ainda tentei demovê-lo, “e os filhos, veja lá o que faz…”, mas ele, determinado, “vou seguir esse homem”, e juntou-se a outros, “e nós também”, secundaram.
Deveras baralhado com o insólito, apercebi-me que o desgraçado, de mãos atadas, cansado da caminhada, estava rodeado de outra gentalha, esfaimada de ódio, de sangue, e clamavam vingança, “mas de quê, santo Deus?”, interroguei-me perplexo, que a arraia não arredava pé do seu troféu, “crucifica-o!”, gritavam para um opulento guardião da ordem, “crucifica-o!”, e dali não desarmavam.
Já se percebeu que a minha Vila, diria, lembrou a via crucis, pois que não é caso para se dizer que festejou a afligida andada do Senhor Bom Jesus da Pedra a caminho do Calvário.
Ainda há um mês, na Ponta Garça, O vira no regaço de Sua extremosa Mãe, expondo-se morto aos fiéis viventes, esses derriçados em depravadas cabanas de divertimento, numa louca orgia de berreiro – que pena me fez.
E eu que me gabava das gentes da minha terra, paciência…
Oh, se me lembra de ver passar, à nossa porta, magotes de gente, meia-tarde, atravessando os Tufos, vindos da Ribeira Quente, para assistir à impressionante Mudança, sem aparato, apenas o andor carregando a Imagem do Condenado – só a “Fanfarra Lealdade” e a “União Progressista” suplicavam, em sons cavos, o amparo a todos nós.
E aquele rancho de almas, gente feliz com lágrimas, saudava-nos alegremente, “vamos para o Fogo do Senhor da Pedra!”, e eu perguntava a meu pai, deveras espantado, “que fogo?!” – ai, tão diferente era o amor à terra.
Hoje, o Fogo é outro, majestoso, admirável, de encher os olhos de deslumbramento, é verdade; mas passeamo-nos rapidamente, encurtando caminho, abrindo a direito, derrubando o viço – e para quê tamanhas esteiras de betão – numa ânsia de tudo se ver por fora, sem o mínimo empenho de se mirar por dentro a alma de outra gente que urdiu o belo em obras consagradas, e lá se foi de nossas vistas o campo, a flor e a madrugada.
É óbvio que não faço a apologia do céu brilhado para gáudio de poetas, ou a quimera de Improvisos e Nocturnos, em noites cálidas do imenso estrelado, nada disso.
Agora, com o Verão a ir-se para outras bandas, talvez fosse de bom-tom acalmar os ânimos exaltados, sentamo-nos num mero assento de pedra, e retomar as veredas de algum discernimento, acautelando a beleza dos Tufos, na minha Ponta Garça e a orla costeira ainda intacta, tudo o que o Criador – pronto, Esse ou Alguém por Ele – nos legou.
E agora o meu reparo: não repitam, noutras voltas da nossa Costa, outros atentados como o do Pesqueiro, o da Calheta de Pedro de Teive e de outras enseadas, para que vingasse o delírio de se ter uma Litoral à maneira…
Pois alevá… os banhos de ruralidade puseram-me assim. Coisas minhas, só isso.
Abeirei-me da criatura, e um semblante sofredor, escorrendo suor farto, dizia bem da sua penosa jornada, de rumo incerto, “quem sois?”, nada me disse, apenas arfava, “claro, estais estafado, bom homem…”, e a resposta do pobretana foi a de menear simplesmente a cabeça – pudera, estava enfraquecido e despojado de si.
Descansava ali numa pedra, depauperado, já se vê, num mero assento que me pareceu ser o contrapeso de um lagar desmantelado. Talvez de alguém que deixara vinha, terra, casa, tudo que tinha, para ir em cata de fortuna fácil nas Américas, pensei.
Mas, ao menos, não teria aquilo que abandonara, um pequeno valor, qualquer coisa que desse para comprar uma pequena casa, para início de vida?
Pois claro, então a terra, pouca que fosse, empoleirada na rocha, a vinha descuidada de anos, o lagar uma boa peça para o museu, nada disso se aproveitaria?
Logo apareceu um outro homem, explicando-me que de nada lhe servia o que os seus de sangue lhe deixaram, “não, meu caro senhor, estou desiludido…”, e eu ainda tentei demovê-lo, “e os filhos, veja lá o que faz…”, mas ele, determinado, “vou seguir esse homem”, e juntou-se a outros, “e nós também”, secundaram.
Deveras baralhado com o insólito, apercebi-me que o desgraçado, de mãos atadas, cansado da caminhada, estava rodeado de outra gentalha, esfaimada de ódio, de sangue, e clamavam vingança, “mas de quê, santo Deus?”, interroguei-me perplexo, que a arraia não arredava pé do seu troféu, “crucifica-o!”, gritavam para um opulento guardião da ordem, “crucifica-o!”, e dali não desarmavam.
Já se percebeu que a minha Vila, diria, lembrou a via crucis, pois que não é caso para se dizer que festejou a afligida andada do Senhor Bom Jesus da Pedra a caminho do Calvário.
Ainda há um mês, na Ponta Garça, O vira no regaço de Sua extremosa Mãe, expondo-se morto aos fiéis viventes, esses derriçados em depravadas cabanas de divertimento, numa louca orgia de berreiro – que pena me fez.
E eu que me gabava das gentes da minha terra, paciência…
Oh, se me lembra de ver passar, à nossa porta, magotes de gente, meia-tarde, atravessando os Tufos, vindos da Ribeira Quente, para assistir à impressionante Mudança, sem aparato, apenas o andor carregando a Imagem do Condenado – só a “Fanfarra Lealdade” e a “União Progressista” suplicavam, em sons cavos, o amparo a todos nós.
E aquele rancho de almas, gente feliz com lágrimas, saudava-nos alegremente, “vamos para o Fogo do Senhor da Pedra!”, e eu perguntava a meu pai, deveras espantado, “que fogo?!” – ai, tão diferente era o amor à terra.
Hoje, o Fogo é outro, majestoso, admirável, de encher os olhos de deslumbramento, é verdade; mas passeamo-nos rapidamente, encurtando caminho, abrindo a direito, derrubando o viço – e para quê tamanhas esteiras de betão – numa ânsia de tudo se ver por fora, sem o mínimo empenho de se mirar por dentro a alma de outra gente que urdiu o belo em obras consagradas, e lá se foi de nossas vistas o campo, a flor e a madrugada.
É óbvio que não faço a apologia do céu brilhado para gáudio de poetas, ou a quimera de Improvisos e Nocturnos, em noites cálidas do imenso estrelado, nada disso.
Agora, com o Verão a ir-se para outras bandas, talvez fosse de bom-tom acalmar os ânimos exaltados, sentamo-nos num mero assento de pedra, e retomar as veredas de algum discernimento, acautelando a beleza dos Tufos, na minha Ponta Garça e a orla costeira ainda intacta, tudo o que o Criador – pronto, Esse ou Alguém por Ele – nos legou.
E agora o meu reparo: não repitam, noutras voltas da nossa Costa, outros atentados como o do Pesqueiro, o da Calheta de Pedro de Teive e de outras enseadas, para que vingasse o delírio de se ter uma Litoral à maneira…
Pois alevá… os banhos de ruralidade puseram-me assim. Coisas minhas, só isso.
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