domingo, 26 de dezembro de 2010

Presépios da Casa de São Domingos

3 comentários:

JBS disse...

Meu lindo anjo barroco

Ah, se meu pai fosse vivo! Pintá-lo-ia em mais outra cartolina.
Faltava apenas o remate, aquele retoque de alguém voando esbaforido, numa corrida arrebatada pelos trilhos siderais – a visita esperada a chegar do Éden – e que de lá traria notícias – a Boa Nova.
Era essa angélica criatura, de seu nome Gabriel, o homem forte de Deus,[ e a Seu mando, que seria pendurado por um fino barbante, preso na pedra queimada que fechava a engenhosa construção de meu pai – a Gruta – “oh… não aparece, João…”, estranhou minha mãe o sumiço do arcanjo mensageiro.
Revirou ela outros caixotes e não estava em nenhum deles, levara descaminho, “deixa lá, pinto outro”, e meia-tarde já meu pai se sentava à mesa do quarto de jantar, recortando de um cartão de caixa de sapatos o que iria ser a figurinha encantadora em falta, e eu já à sua beira.
Um tempo de aguaceiros furtivos zurzia nas vidraças da varanda, dando a meu pai, porventura, a inspiração do desconforto vivido na cena bíblica, “se calhar, também lá será Inverno”, ajuizei, ele anuiu, “é isso”, e sorriu.
Fiquei ali preso, assistindo ao nascer de outro anjinho, e nada perdia dos detalhes. Ele olhou-me demoradamente, “papá, o que é?”. Nada disse, parecia mesmo absorvido, “papá…”, quis despertar-lhe e na mesma ficou.
Alguma coisa estaria na sua mente, pois insistiu em mirar-me, “o que é, papá?”, indaguei desconsertado. Mais uma vez não respondeu, mas percebi-lhe um sorriso de carinho, continuando a desenhar a sua arte de cartolina, “vira-te…assim de lado… isso, não te mexas”, e assim permaneci por algum tempo, “pronto, já podes ir brincar”, mas preferi continuar por ali, vendo-o deliciado a pintar a sua obra, “e agora, papá?”, ele acariciou a minha farta cabeleira ruiva, “já vais ver…”, até que chamou minha mãe, “que achas, Maria Ana?”.
Aí percebi a razão daquele seu olhar fixo em mim, “ai os teus canudos…”, e minha mãe beijou o seu menino ali retratado.

JBS disse...

Continuação...

Satisfeito com o resultado da obra executada a preceito, foi meu pai colocar o lindo anjo barroco no lugar a ele reservado, como se encenasse, com aquele último pormenor, a soleníssima Anunciação – “salve Maria, cheia de graça, o Senhor está contigo”.
Ó ternura de milénios, como se pode avaliar o amor de uma mãe, de um pai, embevecidos… Ó gente de letras, quem poderá descrever o primeiro choro do menino Deus…
Não O viram nascer, não; nem lá estiveram, mas crêem e só isso vale. As coisas existem porque nós as pensamos.
Muito contente, já se vê, com a conotação angélica, ouvi de minha mãe, “teus irmãos, chegam amanhã”.
Chovia a potes e a camioneta, por isso, parou à nossa porta, coisa rara, e mal se apearam, disparei, “Nuno, Vítor, o anjo sou eu!”.
Ansiava ardentemente que chegasse a grande noite, que se cantassem os alegres, que fosse, enfim, Natal.
Está claro que dizia, a todos que lá passavam para ver o nosso presépio, “o anjo sou eu!”, ia eu dos quatro para os cinco anos.
Ora, este ano – a chegar ao fim – correra o Verão em força, parecendo que se dedicara somente à Ponta Garça e vá-se lá saber porquê… Até cuido que o calmeirão estival lá teve os seus motivos, coisas que parecem ininteligíveis à luz do que é racional.
Sou daqueles que associam os factos, que todos eles se interligam, que tudo tem um fio condutor, que toda a coisa encaixa na outra e por aí fora – é a mais pura verdade e várias vezes confirmada.
Pois é isso. Na minha terra, a terra prometida, de que me foi legada grande parte da sua memória – a que vou dando voz e o acerto possível – tagarelava pela largueza da casa – a tal que veio da Cova Grande, pedra por pedra – uma nova criatura, e farfalhava ele a língua curta, querendo soltar-se num palavreado mal-amanhado – o meu terceiro neto.
E fiquei para ali a matutar...
Vendo aquela frágil figurinha, toda ela meiga, a cabeleira basta, adejando os canudos loiros, numa passada frenética de jamais parar, cismei: chegou à terra um anjo barroco…
Está mais que visto que voltei muito atrás no tempo, fiquei até zonzo – se estivesse de pé, dava-me um tombo e caía, acreditem – ah, se meu pai fosse vivo! Pintá-lo-ia em mais outra cartolina.
Aceitem os leitores domingueiros esta fantasia de Natal.
2010-12-15
Bento Sampaio
sampaio.jb@gmail.com

JBS disse...

É óbvio que repeti a segunda parte da crónica...
Como sou um avô babado, dedequei-lhe este poema:

Ó Anjo barroco

Vai o oleiro a obra moldando.
Dá-lhe voltas, vê-a de qualquer lado,
Mira-a… vai o barro afeiçoando,
Mas o vulto contém-se, inda calado…

Dá-lhe forma, dá-lhe já um rosto
Ajeita-lhe os olhos, o cabelo
Ondulado, lindo, fá-lo a gosto.
Olha o bom anjinho, por gozo fê-lo…

Diz o oleiro para o seu anjinho:
- Menino, fala, vá, brinca comigo!
- Ouve … fico toda a vida contigo…

Num repente, sai, foge pró caminho.
- Anjinho! – clama surpreso o oleiro –
Ah, menino de sua mãe, matreiro…

Bento Sampaio
Dezembro 2010