Em tempo de Festa, um artigo do nosso Bento Sampaio, estes dias em terras do Canadá para lançar a sua segunda colectânea de crónicas “Viagens no Tempo”, no dia dos Açores. A Identidade deseja-lhe a merecida recepção nessas nossas terras de Diáspora!
Planava já o Dakota americano sobre um amontoado de nuvens, vastíssimo e alvo, o sol lá em cima clareava-me as ideias, o tino voltou atrás, vinha eu de Angra.
E fervia-me, ainda fresca, no bar da messe, a fala do comandante, apertado no seu blusão de cabedal verde, “o nosso aspirante Sampaio já tem a sua licença?”.
Num relance passei revista aos meus imagináveis pontos fracos – algum relatório por entregar, as contas da Tesouraria não batiam certo, o major do Comando teria engendrado, à socapa, uma aleivosa intentona, eu sei lá… – estava mesmo bloqueado.
É certo que os dias concedidos eram fora da norma, que não os tinha por direito, mas ao dizer-lhe, “não sei se vou ser mobilizado… meu comandante…”. E, antes de o ser, “gostava de ir à festa…” – sabia lá se, indo, vinha inteiro do inferno de África…
Mas como poderia ter vindo ele com aquela pergunta a despropósito, se eu já tinha o passaporte na mão, e fora ele que o assinara?
Bem, fiquei um pouco desconcertado, e ele, o tenente-coronel Garrido Borges, aliás um simpático militar, apercebeu-se disso, apertou-me a mão, “então, boas festas”.
Foi então que caí em mim… o homem, certamente, contava que eu lhe aparecesse no gabinete para lhe acenar, “quer alguma coisa para a sua Lagoa, meu comandante?”.
Não, penosa gafe minha. Em vez disso, meti-me no bar a cavaquear sobre as grandiosas festas do Senhor Santo Cristo, “são as maiores dos Açores!”, exclamei orgulhoso da minha ilha.
Não estando nenhum rabo-torto por ali, animei-me em descrevê-las. Talvez parecendo uma conversa agastada para alguns, “conte lá as lâmpadas nosso aspirante Sampaio…”, rematou o comandante numa farta gargalhada, apagando o aromático Marlboro, e saiu.
Era novato, pouco rodado em subtilezas de sofá…
Pois é. Levaria ainda algum tempo para perceber que o melhor da conversa é escutar os outros…
E por que não me pusera logo ao fresco? Aí sim, deixava o bar, a conversa bacoca, atravessava a parada, acenando à beleza barroca da igreja de São João Baptista, cruzava a porta-de-armas e adeus Castelo, até à próxima, Angra.
O avião fazia-se agora ligeiro sobre um céu ao contrário, com o manto leitoso de nuvens lá em baixo. Aquele cenário único afagava-me o íntimo – percebem-me?
Divagando sobre a criação das coisas – os campos... o mar... o sol imenso... em diálogos belos, transcendentes... – a viagem amolecia o nervoso miudinho de chegar à ilha do nosso Santo milagreiro.
De facto, há coisas que quase não têm explicação, o mundo a medrar de espanto… excelso, “do you want a cofee?”, despertou-me do devaneio o militar americano.
Na verdade, tudo o que era da terra da América tinha aquele gostinho especial, tão do agrado de todos.
Mas logo voltei ao bar do Castelo e, por mais hinos à venerável imagem que ouvisse, aquela gafe não me largava, atazanando-me o tino durante toda a festa. E que poderia eu fazer?
Dava por mim a contar tudo: as bandas, os padres, as inumeráveis promessas, quantos seriam os bombeiros, e até os foguetes… – parecia possesso.
De volta ao Castelo, trazia uma ânsia de ter aquilo que gostaria – a tal subtileza de sofá… – e fui de carreira ao seu gabinete, “tem aqui um mimo da sua Lagoa, meu comandante”.
Ele desembrulhou o cinzeiro de louça da Lagoa, que lhe trouxera, parecendo acariciá-lo, e olhou-me com ternura, como se fora filho seu, “desculpe lá, nosso aspirante Sampaio, eu notei…você ficou atrapalhado, não foi?”.
Era evidente que tinha revelado algum embaraço, mas consolava-me agora aquela reparação, saboreando o seu coração de barrela.
Mais à vontade, rebusquei uma graça desenjoativa, “não fui capaz de contar as lâmpadas, meu comandante…”. Ele levantou-se em mais uma farta gargalhada, mas logo franziu o sobrolho, “você está mobilizado”. Fiquei sem fala, as canelas fraquejavam-me, “mobilizado? …”. Apertou-me o ombro com enternecimento, “vá lá que é para Angola…”.
E de nada serviu gritar – Angola é nossa, Angola é nossa!
E fervia-me, ainda fresca, no bar da messe, a fala do comandante, apertado no seu blusão de cabedal verde, “o nosso aspirante Sampaio já tem a sua licença?”.
Num relance passei revista aos meus imagináveis pontos fracos – algum relatório por entregar, as contas da Tesouraria não batiam certo, o major do Comando teria engendrado, à socapa, uma aleivosa intentona, eu sei lá… – estava mesmo bloqueado.
É certo que os dias concedidos eram fora da norma, que não os tinha por direito, mas ao dizer-lhe, “não sei se vou ser mobilizado… meu comandante…”. E, antes de o ser, “gostava de ir à festa…” – sabia lá se, indo, vinha inteiro do inferno de África…
Mas como poderia ter vindo ele com aquela pergunta a despropósito, se eu já tinha o passaporte na mão, e fora ele que o assinara?
Bem, fiquei um pouco desconcertado, e ele, o tenente-coronel Garrido Borges, aliás um simpático militar, apercebeu-se disso, apertou-me a mão, “então, boas festas”.
Foi então que caí em mim… o homem, certamente, contava que eu lhe aparecesse no gabinete para lhe acenar, “quer alguma coisa para a sua Lagoa, meu comandante?”.
Não, penosa gafe minha. Em vez disso, meti-me no bar a cavaquear sobre as grandiosas festas do Senhor Santo Cristo, “são as maiores dos Açores!”, exclamei orgulhoso da minha ilha.
Não estando nenhum rabo-torto por ali, animei-me em descrevê-las. Talvez parecendo uma conversa agastada para alguns, “conte lá as lâmpadas nosso aspirante Sampaio…”, rematou o comandante numa farta gargalhada, apagando o aromático Marlboro, e saiu.
Era novato, pouco rodado em subtilezas de sofá…
Pois é. Levaria ainda algum tempo para perceber que o melhor da conversa é escutar os outros…
E por que não me pusera logo ao fresco? Aí sim, deixava o bar, a conversa bacoca, atravessava a parada, acenando à beleza barroca da igreja de São João Baptista, cruzava a porta-de-armas e adeus Castelo, até à próxima, Angra.
O avião fazia-se agora ligeiro sobre um céu ao contrário, com o manto leitoso de nuvens lá em baixo. Aquele cenário único afagava-me o íntimo – percebem-me?
Divagando sobre a criação das coisas – os campos... o mar... o sol imenso... em diálogos belos, transcendentes... – a viagem amolecia o nervoso miudinho de chegar à ilha do nosso Santo milagreiro.
De facto, há coisas que quase não têm explicação, o mundo a medrar de espanto… excelso, “do you want a cofee?”, despertou-me do devaneio o militar americano.
Na verdade, tudo o que era da terra da América tinha aquele gostinho especial, tão do agrado de todos.
Mas logo voltei ao bar do Castelo e, por mais hinos à venerável imagem que ouvisse, aquela gafe não me largava, atazanando-me o tino durante toda a festa. E que poderia eu fazer?
Dava por mim a contar tudo: as bandas, os padres, as inumeráveis promessas, quantos seriam os bombeiros, e até os foguetes… – parecia possesso.
De volta ao Castelo, trazia uma ânsia de ter aquilo que gostaria – a tal subtileza de sofá… – e fui de carreira ao seu gabinete, “tem aqui um mimo da sua Lagoa, meu comandante”.
Ele desembrulhou o cinzeiro de louça da Lagoa, que lhe trouxera, parecendo acariciá-lo, e olhou-me com ternura, como se fora filho seu, “desculpe lá, nosso aspirante Sampaio, eu notei…você ficou atrapalhado, não foi?”.
Era evidente que tinha revelado algum embaraço, mas consolava-me agora aquela reparação, saboreando o seu coração de barrela.
Mais à vontade, rebusquei uma graça desenjoativa, “não fui capaz de contar as lâmpadas, meu comandante…”. Ele levantou-se em mais uma farta gargalhada, mas logo franziu o sobrolho, “você está mobilizado”. Fiquei sem fala, as canelas fraquejavam-me, “mobilizado? …”. Apertou-me o ombro com enternecimento, “vá lá que é para Angola…”.
E de nada serviu gritar – Angola é nossa, Angola é nossa!
1 comentário:
Partiu hoje, para Lisboa, o Senhor Luis du Lait, que aqui veio às Festas.
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