terça-feira, 14 de abril de 2009

A bela casa de cima - I

De "Viagens no Tempo", de Bento Sampaio:

E, quando voltou, deu-lhe uma volta completa que fez da velha casa o que está à vista – janelas bordadas de fantasias.
Pouca coisa acima da casa da Gusmoa, aí a meio caminho da igreja e das Alminhas, lá está ainda a bonita casa de cima, ficando-lhe defronte a casa de baixo, onde nasci e me criei, nossa que é, digamos, na família ficou.
Ouvi a alguém, ou talvez de mim mesmo – confesso que já nem sei – que as casas são o berço da gente, e verdade é este sentimento que trago apertado, ou seja, o apego a três casas que me acompanharam no devaneio infantil de nelas fazer ninho.
A desafogada empena da casa de cima, altiva, duas varandas geminadas empoleiradas no seu topo, o balcão de arcada a ela achegado, o grande pátio de lidas de lavoura, tudo nela era largueza que muito me enchiam os olhos, “Marianinha, aquela é velha, é verdade, mas tem duas estufas…”, convencia meu avô a sua mulher pequenina que lhe havia de ficar atrás, na sua desanda para a Califórnia, e continuava ele num derriço de ideias, “assim, ficais prevenida, mulher…”, com os ananases em demanda da Europa.
Ela, a minha avó Mariana Augusta, o corpo miúdo, anuiu apertando aquele mimo a medrar de consolo dentro de si, “se assim julgais…”, e ala meu avô Chico de acertar-se na permuta com o casal de cunhados solteiros, e de se sumir por dezoito anos no desatino de fortuna, “quando voltar, hei-de dar-lhe outro jeito…” – partiu com a promessa…
Não era homem que se ficava em meras juras, isso nunca! Era uma criatura decidida. E, quando voltou, deu-lhe uma volta completa que fez da velha casa o que está à vista – janelas bordadas de fantasias.
Mas a entrada lateral não lhe descobria meu avô o modo de a lançar com elegância arquitectónica, “Joãozinho, vê se me resolves isso”, disse a meu pai, já as férias grandes chegavam ao fim.
Algum tempo depois, mandava ele de Santarém o desenho, à escala, de como seria. E a carta, “papá, a escada deverá ser com degraus de pedra aparelhada com o bordo do passo arredondado”.
Assim corria a escada de dois lances em L numa subida suave para a casa – o de cima bem mais curto que o de baixo –, dando para um balcão de meia tarde para se lhe entrar num hall bem luminoso – coisa primorosa.
Mas as voltas são muitas e a casa foi parar, e bem, à Igreja, para lá receber as Irmãs que ainda cuidam dos meninos da Ponta Garça.
E aí entra o génio iluminado de alguém – certamente que não foi o arquitecto que a requalificou, e isso afianço – que entendeu dar-lhe um outro giro que foi empinar num só lance uma escada com degraus de cimento, e os de pedra aparelhada com o bordo do passo arredondado, sumiram-se no entulho das obras de requalificação, ou…
E pior: foi-se o mimoso balcão de meia tarde. Pronto, esta é a reposição correcta do que, porventura, algum dia – e eu já estiver aparelhado sem fala… – alguém se dispuser, “como era então?”.
Adiante, que a bela casa de cima servia de primeira escapadela segura de me pôr porta fora, cruzando apenas o nosso caminho; e eu corria escada abaixo, “toma sentido menino…”, prevenia minha mãe do alto da escada, e para quê, se nem automóvel nem camioneta passava todo o santíssimo dia – só o burro do João manco, zurrando e mulheres e vendilhões de peixe sempre discutindo – “papá, vamos almoçar?”, e ele beijava-me, pegando-me no colo, feliz, “atravessaste sozinho o nosso caminho…”.
Diz-se que não há caminho mais seguro na vida do que encher os olhos em terra quanta a vejas e casa quanta tenhas, o que no caso ia muito para lá do básico e necessário.
É que se assim não fosse, que seria da nossa sereníssima casa de baixo, vestida de cantarias, que a nós todos viu crescer, e do seu vistoso balcão nas traseiras sobranceiro ao mar; do lustroso paço dos Botelhos da Senhora da Vida; a do solteirão e nosso parente Horácio Pimentel, desapegada de outras, de porta e janelas redondas em fina cantaria; da linda casa de António Elias; do gracioso balcão em arcada e sua cocheira e também o desaparecido óculo de entrada da casa de meus sogros; a placidez de linhas da casa da Adriana; a ermida da Senhora das Mercês, a tal jóia barroca; dos balcões com senhoras em tais conversas de meia tarde; de estrebarias albergando charabãs cansados de festas e arraiais; oh, e dos portões, franqueando o fora-e-dentro de seus amos; e outros tantos brindes que os nossos nos legaram?
Se tal não fora a vontade de erguer património na minha Ponta Garça, pouco mais do que casa sim, casa não, de porta e janela, teria hoje a gente para admirar.
Ah, mas ainda se têm vizinhas demorando-se num cochicho pegado – que gostoso viver é o de gente boa da minha linda terra.
Ficam-me, já se vê, mais coisas para se contar da bela casa de cima com janelas bordadas de fantasias...

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