Já se vê que o presbítero ficou desolado com o fiasco, “senhor padre, nada de apoquentar, não falta água na fonte…”
Ora, se me doía o coração em ter assistido impotente a toda a Via Crucis daquela semana, e como era inacreditável aceitar e entender, na minha idade de menino, os passos sinistros que o saudoso padre Rei relatava, “Jesus cai pela terceira vez”, e nada podia contra tamanha barbárie, “Jesus é pregado na cruz”, voltava ele mais aluído e contristado.
Lembro-me tão bem da minha revolta contra quem ousara acusar, açoitar, prender e crucificar um Homem bom e generoso, “isso foi mesmo verdade?”, perguntava à minha mãe, colando-me ao seu ouvido, “psiu…”, pedia-me silêncio. Por isso, cantava perturbado, “permiti que eu vos ajude a levar a vossa cruz”, implorando numa igreja lúgubre, cinzenta de tristeza – oh, como tudo estava consumado.
Ainda há uma semana ouvira, “muitos meninos estenderam os seus mantos e com ramos aclamavam…”, à Sua entrada em Jerusalém, numa impressionante euforia, “bendito o que vem em nome do Senhor!”.
Mas é assim, passeou-se o Senhor morto na noite de sexta-feira até ao Calvário, pouco acima da nossa casa, como se aquela tragédia ocorresse no meio de nós. Para cúmulo, o passeio pungente ainda vinha acompanhado da pesarosa marcha fúnebre, arrastando-se a filarmónica entremeada ao som estridente de matracas – que coisa mais funesta.
Mas tinha que acontecer um grito, “logo, quando o sino der meio-dia…”, apregoou o mais velho do rapazio esbaforido da minha vizinhança, e ele mexia-se, inquieto que o cerimonial da Semana Maior chegasse ao fim. E, quando passava o Carlos sacristão para a igreja, “está quase, rapazes…”, anunciou ele sorridente.
Logo ao primeiro toque do sino pequenino, o líder gritou, “aleluia, piãs pra rua!”, e toca de lançar o pião, uns contra os outros, numa resposta pronta e assanhada contra o Belzebu, “morre demónio!”.
Bem, ainda Heandel vinha muito longe de lhe descobrir a beleza barroca da sua magistral oratória “O Messias” – e mesmo que dela soubesse, tampouco tínhamos rádio lá em casa para apreciá-la –, e ouvira falar ao professor Eduíno do coro “Aleluia”, porventura o mais conhecido da grande obra do compositor alemão, ao tempo em digressão por Inglaterra.
Anos depois, pela boca de quem veio a seguir, o padre Gil, “ainda gosto mais do ‘Amen’, é fantástico!”, e grande era o entusiasmo dos dois por recordarem o orfeão do seminário de Angra, regido pelo padre José d’Ávila.
Até que uma vez aconteceu, na Semana Santa, escutar no programa Que quer ouvir? do Emissor Regional, “a pedido do ouvinte… vamos transmitir o Aleluia de Händel”, anunciava Sílvio do Couto.
Chamei minha mãe do quarto da costura e tranquei-me com ela no quarto de jantar. Colei-me ao rádio, e fechei-me todo naquela maravilha, antevendo aquele grito de festa na entrada triunfal de Jesus em Jerusalém para a celebração da Páscoa.
Pois já era assim o mundo das artes dos outros, duzentos anos antes… Enche o meu peito, num encanto mago, o frémito das coisas dolorosas...
Adiante. O novo padre metera-se em grandes obras, transformando por completo a capela do baptistério com uma enorme pia em pedra basáltica no centro, e um bonito portão em ferro. Tudo cheirava, de facto, a novo, mas à custa da graciosa pia em mármore, sacrificada ao abandono da arrecadação que, muitos anos depois, passou a um lugar condigno na sacristia, e bem.
Já crescido, mexendo-me bem no dentro e fora da igreja, arrebanhou o novo vigário os ratos de sacristia para as cerimónias a decorrer no Sábado Santo, “tu levas o alguidar com a água benta”, disse-me na véspera, “o barro do alguidar joga bem com a pedra…”, discorria assim o padre Gil.
Em casa, já a noite se adiantava, cheirava mesmo a festa com massa fresca, a boa Maria a mexer a panela de papas de arroz para o domingo, e eu a preparar-me para rapá-la.
Apesar disso, comecei a consumir-me com a incumbência do baptistério, não fosse deixar cair a vasilha de barro.
Diferente e novo em ideias, o dinâmico vigário entendeu que o meu tamanho de rente-ao-chão poderia, na verdade, complicar-se, “está bem”, e fui substituído.
No meio dos novos cânticos e rezas, muitos eram os mirones a assistir ao ritual nunca visto. Quando se preparava para derramar a água já benta para dentro da pia, o Teófilo Quental, um rapagão bem espigado, calculou mal a altura da pia, o azar veio juntar-se ao cerimonial, quebrando-se o alguidar no chão e a água benta bem te vi…
Já se vê que o presbítero ficou desolado com o fiasco, “senhor padre, nada de apoquentar, não falta água na fonte…”, e foi esse mesmo o remédio prescrito pelo desenrascado sacristão, “in nomine Patris…”, benzeu o vigário a nova dose...
Santa Páscoa.
P. S. – Um diferente conceito, o da visibilidade, levou outra pia a tomar o lugar da primeira e fora da sua capela original – pois alevá...
Ora, se me doía o coração em ter assistido impotente a toda a Via Crucis daquela semana, e como era inacreditável aceitar e entender, na minha idade de menino, os passos sinistros que o saudoso padre Rei relatava, “Jesus cai pela terceira vez”, e nada podia contra tamanha barbárie, “Jesus é pregado na cruz”, voltava ele mais aluído e contristado.
Lembro-me tão bem da minha revolta contra quem ousara acusar, açoitar, prender e crucificar um Homem bom e generoso, “isso foi mesmo verdade?”, perguntava à minha mãe, colando-me ao seu ouvido, “psiu…”, pedia-me silêncio. Por isso, cantava perturbado, “permiti que eu vos ajude a levar a vossa cruz”, implorando numa igreja lúgubre, cinzenta de tristeza – oh, como tudo estava consumado.
Ainda há uma semana ouvira, “muitos meninos estenderam os seus mantos e com ramos aclamavam…”, à Sua entrada em Jerusalém, numa impressionante euforia, “bendito o que vem em nome do Senhor!”.
Mas é assim, passeou-se o Senhor morto na noite de sexta-feira até ao Calvário, pouco acima da nossa casa, como se aquela tragédia ocorresse no meio de nós. Para cúmulo, o passeio pungente ainda vinha acompanhado da pesarosa marcha fúnebre, arrastando-se a filarmónica entremeada ao som estridente de matracas – que coisa mais funesta.
Mas tinha que acontecer um grito, “logo, quando o sino der meio-dia…”, apregoou o mais velho do rapazio esbaforido da minha vizinhança, e ele mexia-se, inquieto que o cerimonial da Semana Maior chegasse ao fim. E, quando passava o Carlos sacristão para a igreja, “está quase, rapazes…”, anunciou ele sorridente.
Logo ao primeiro toque do sino pequenino, o líder gritou, “aleluia, piãs pra rua!”, e toca de lançar o pião, uns contra os outros, numa resposta pronta e assanhada contra o Belzebu, “morre demónio!”.
Bem, ainda Heandel vinha muito longe de lhe descobrir a beleza barroca da sua magistral oratória “O Messias” – e mesmo que dela soubesse, tampouco tínhamos rádio lá em casa para apreciá-la –, e ouvira falar ao professor Eduíno do coro “Aleluia”, porventura o mais conhecido da grande obra do compositor alemão, ao tempo em digressão por Inglaterra.
Anos depois, pela boca de quem veio a seguir, o padre Gil, “ainda gosto mais do ‘Amen’, é fantástico!”, e grande era o entusiasmo dos dois por recordarem o orfeão do seminário de Angra, regido pelo padre José d’Ávila.
Até que uma vez aconteceu, na Semana Santa, escutar no programa Que quer ouvir? do Emissor Regional, “a pedido do ouvinte… vamos transmitir o Aleluia de Händel”, anunciava Sílvio do Couto.
Chamei minha mãe do quarto da costura e tranquei-me com ela no quarto de jantar. Colei-me ao rádio, e fechei-me todo naquela maravilha, antevendo aquele grito de festa na entrada triunfal de Jesus em Jerusalém para a celebração da Páscoa.
Pois já era assim o mundo das artes dos outros, duzentos anos antes… Enche o meu peito, num encanto mago, o frémito das coisas dolorosas...
Adiante. O novo padre metera-se em grandes obras, transformando por completo a capela do baptistério com uma enorme pia em pedra basáltica no centro, e um bonito portão em ferro. Tudo cheirava, de facto, a novo, mas à custa da graciosa pia em mármore, sacrificada ao abandono da arrecadação que, muitos anos depois, passou a um lugar condigno na sacristia, e bem.
Já crescido, mexendo-me bem no dentro e fora da igreja, arrebanhou o novo vigário os ratos de sacristia para as cerimónias a decorrer no Sábado Santo, “tu levas o alguidar com a água benta”, disse-me na véspera, “o barro do alguidar joga bem com a pedra…”, discorria assim o padre Gil.
Em casa, já a noite se adiantava, cheirava mesmo a festa com massa fresca, a boa Maria a mexer a panela de papas de arroz para o domingo, e eu a preparar-me para rapá-la.
Apesar disso, comecei a consumir-me com a incumbência do baptistério, não fosse deixar cair a vasilha de barro.
Diferente e novo em ideias, o dinâmico vigário entendeu que o meu tamanho de rente-ao-chão poderia, na verdade, complicar-se, “está bem”, e fui substituído.
No meio dos novos cânticos e rezas, muitos eram os mirones a assistir ao ritual nunca visto. Quando se preparava para derramar a água já benta para dentro da pia, o Teófilo Quental, um rapagão bem espigado, calculou mal a altura da pia, o azar veio juntar-se ao cerimonial, quebrando-se o alguidar no chão e a água benta bem te vi…
Já se vê que o presbítero ficou desolado com o fiasco, “senhor padre, nada de apoquentar, não falta água na fonte…”, e foi esse mesmo o remédio prescrito pelo desenrascado sacristão, “in nomine Patris…”, benzeu o vigário a nova dose...
Santa Páscoa.
P. S. – Um diferente conceito, o da visibilidade, levou outra pia a tomar o lugar da primeira e fora da sua capela original – pois alevá...
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