sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O Botequim.

Como deve ser, em dias de São Sebastião, o mártir soldado, antes do tradicional bolo de laranja que fecha o domingueiro almoço de festa, o prato típico são as tripas à moda do Porto, lembrando o excedente da carne que era enviada aos nossos soldados que propagavam a Fé e o Império. Ora, a propósito de tripas, tem Bento Sampaio este excelente artigo para leitura de fim de semana:
"Ainda hesitei, mas a fome apertava, “quem sabe se aqui há tripas...”
Das muitas bodegas, que topamos por esse país fora, nenhuma tem algo que lhe ligue à do vizinho, “isso é tudo a mesma coisa...”, cochichava para minha mulher, “isso é que era bom...”, asseverava uma senhora meia-idade, e o que foi que eu fui dizer, “só se for na sua terra...”, ripostou o tasqueiro lá de dentro do balcão, ainda nem tínhamos lá entrado.
Mas o caso era outro. Há uns dias, furando as ruas do Porto – isto para aí quase vinte anos –, tinha cá um desejo, levara-o de cá, que me impelia para um típico tripas-à-moda-do-Porto.
Rua acima, rua abaixo, talvez nesta aqui, que cheira a bacahau, ou naquela ali defronte, com um fortíssimo odor a polvo, ou ainda, quem sabe, ir para as bandas da Ribeira, o certo é que não havia jeito de descobrir um poiso com a especialidade da terra.
Bem, andava um pouco desapontado, entre os safados filetes de abrótea, requentados num óleo de todo o santíssimo dia, o refonfelho frango assado, com batatas fritas, padecendo do mesmo mal, o portuguesíssimo cozido, cheio de tudo, fartando a goela, ah, o coelho à caçador, boa coisa, é verdade,
Não podia deixar a cidade sem me refastelar num típico tripas-à-moda-do-Porto, “daqui não vou sem as santas tripas”, gracejei.
Mas, francamente, não víamos nada, cheirando ao que pretendíamos. Nunca se deve dar o tempo por perdido, pois ia convencido de que... e mergulhámos nas ruelas da Invicta, deixando a vetusta Sé em sossego, já passava muita coisa depois do meio-dia, “ora boa tarde!”, enfatizei de tal modo que o tasqueiro me percebeu, “a toda a hora se come na nossa casa...”, recebeu-nos com um sorriso de bem-disposto.
As cartolas, mesmo à entrada do tasco, uns fulanos, ao balcão, abocanhando grossos copos de tinto, um gato amarelo, mansarrão, saltando de pipo em pipo, tudo aquilo era uma relíquia num tempo de modernidade, quase paredes meias, em chegando à Estação de São Bento.
Ainda hesitei, mas a fome apertava, “quem sabe se aqui há tripas...”, observei quase desapontado por não me poder refastelar no celebérrimo tripas-à-moda-do-Porto.
Podia ser, não custava perguntar, “sabe onde podemos, por aqui perto, comer umas tripas?”, ele reparou, decerto, no meu desalento, “aqui!”, e gritou para uma catraia, “leva estes senhores lá para cima”.
Deu para pensar que talvez não nos tivesse entendido direito, e nos quisesse impingir uma dobrada, “sai-te coisa ruim”, refilou a minha cara-metade, ou os mesmíssimos filetes, com uma só diferença, o óleo de toda a semana...
Não. O acolhedor taberneiro tinha, a verdade se diga, uma casa muito antiga, dois séculos, à vontade. Um quarto grande, com duas mesas, um louceiro com copos e pratos, talheres nas gavetas, e mais um outro quarto ao lado, com uma mesa grande para seis clientes.
Parecia que o fulano tivesse chegado lá da terra, com a mobília de uma herança fresquinha, coisa pouca, tudo limpo, mas que chegava bem para o negócio...
Comi que me fartei; e mais comia tripas para nunca mais me esquecer daquele lugar singular, não fora a hora de apanhar o comboio para Lisboa.
Imagine-se a soneca de cinco horas, revirando as tripas noutras parentes da mesma laia, não comparando...
Ao outro dia, domingo – ainda o meu irmão Nuno andava connosco e as tripas estavam já com dono –, subimos, com os meus, uma viela por detrás da Estação do Rossio, em cata de codornizes, “são fresquinhas”, ajudou ao apetite um fulano, parecendo do Norte, “perto de Vila Real”, acrescentou.
Não era uma tasca, mas antes fosse, “ó amigo este pão está quentinho, mas veja lá...”, e denunciámos o incrível, “este pão, repare bem, tem bolor!”.
Já se vê o chinfrim de quem tinha uma vítima pela frente, um pobre coitado sem defesa que lhe valesse, “isto parece incrível!”, clamava um, “onde já se viu, em pleno centro de Lisboa!”, blasfemava outro, “quem é que julga que somos?!”, e o último insulto, “somos porcos?!”.
O nosso homenzinho, amarelo, sem saber o que dizer perante tal evidência – e antes estivesse calado –, lá teve que se sair com a pior desculpa, “é domingo...”, e todos, pareciam combinados, “e depois, e depois?!”, ele ainda apostou, “e o que é que queriam que eu fizesse ao pão?...”
Bodega, tasca, taberna ou botequim, tudo isso ainda é o de melhor que temos de autentico.
Se tem um gato amarelo, pachorrento, espreguiçando-se sobre as cartolas à porta, é porque o vinho é de boa cepa, é da pura uva, é da casa."

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