terça-feira, 17 de março de 2009

É pegar ou largar.

Aqui vai uma crónica de Bento Sampaio, do seu Viagens no Tempo, enviada a propósito do artigo sobre a Rua do Frias:
"eram, eram, antes de chover, mas agora chove mesmo...”, e esboçou aquele sorriso brando de quem tinha a vida a correr-lhe bem.
Às vezes, torna-se difícil tomar uma decisão. Mas porquê tanta dúvida em definir uma atitude? Mal sabemos até a razão da delonga, porque tudo indicava naquele caminho. E, pronto, adiante – fica para outra ocasião.
Uma pessoa, à minha frente, assume-se, “sim, esse aí”, dirige-se para uma moça loira, enxuta, não tem mais que dezoito anos, duas tranças a enfeitar-lhe aquele gracioso gesto de adolescente e um sorriso brando a adocicar-lhe o semblante. E ela, satisfeita com mais uma venda, volta-se para outro cliente, ainda indeciso, “olhe que vai chover... são só dez escudos”, mas ele segue em frente, apostando numa melhoria do tempo.
E eu imitei-o – quem sabe se é só uma nuvem escura, negra não parece tanto assim –, “olhe que vai chover... são só dez escudos”, repete a jovem, vezes sem conta, o mesmo proclamo daquela tarde, no falar dela, ameaçando chuva copiosa.
Mas eu, fazendo orelhas moucas, trepei, depressa, a escadaria do palácio dos condes de Alvor, e meti-me dentro do museu das “Janelas Verdes”; começava, naquele preciso instante, a chuviscar.Bem, tinha-me livrado, a tempo, de gastar uns patacos na compra do guarda-chuva, dinheiro que me fazia mesmo falta. Havia chegado a Lisboa, nos finais de Dezembro de 1963, para engrossar, no fim de Janeiro, as fileiras da recruta, em Mafra, e tinha de gizar bem os meus gastos.
Agora, importava mergulhar na Arte Antiga do vasto museu. Lá dentro, logo na primeira sala, um valente estrondo ressoou e a luz deu sinal de se finar. Com aquela tremenda trovoada, cedo me veio à lembrança o meu pai falar do tempo em Lisboa, “em pleno Inverno, há dias seguidos de muito sol, frios de rachar”, e eu quase não queria ouvir o resto da sua recomendação, “mas quando desata a chover, são dias a fio”.
Arrepiei-me só de pensar como chegaria a casa, feito numa grande sopa. Fiz o possível para guardar, para mais tarde, essa apoquentação, já bem evidente, e os sapatos encharcados?... e um resfriado?...
Cada coisa a seu tempo, parecia o melhor conselho, lá isso parecia, só que a consumição ia tomando conta de mim.
De sala em sala, ia admirando as preciosidades de arte antiga, mas o retinir da chuva, a verdascar as grandes janelas, fazia com que desse de caras com a tal moça loira – imagine-se – estampada numa grande tela, a fixar-me intensamente, “olhe que vai chover... são só dez escudos”.
Procurando abstrair-me da situação penosa, que, na certa, me esperava lá fora, decidi-me demorar um bocado, em frente dos célebres Painéis de São Vicente, pedindo, ao patrono de Lisboa, clemência para a pena que iria cumprir no regresso a casa.
Mas não tinha conserto, a chuva era impiedosa, queria ela lá saber da minha angústia, “mas quando desata a chover, são dias a fio”, parecia até que meu pai se estivesse a rir da situação, “és novo, tens muito que aprender...”. Não, ele era incapaz de zombar do meu embaraço. Aligeirei a visita, que deveria ser demorada, e fiquei-me a pensar, junto de um cofre veneziano, como que a adivinhar-lhe o poderio de dinheiro, que tivera em outros tempos, e que daria para comprar todas as lojas de guarda-chuvas do mundo...
Qual seria o melhor caminho, para chegar a casa, ou melhor, que eléctrico, ou autocarro deveria tomar, e ainda, se voltaria a descer a escadaria para a avenida 24 de Julho. Precisava de companhia – um guarda-chuva.
Neste mister, ia a deixar o museu e não é que uma voz conhecida, “olhe que chove... são só doze mil e quinhentos”, voltou à baila, ali no átrio. Era ela, a mesma moça loira, satisfeita com o negócio a correr-lhe de feição.
Não tinha alternativa possível, ou investia no guarda-sol, como se dizia na minha tão distante Ponta Garça, ou, então, sujeitava-me a uma grande molha, até apanhar o primeiro transporte, “esse aí”, decidi-me e apontei para um, com o pano em xadrez. Tirei dez escudos, e, não ligando ao novo preço, meti-lhe na mão duas moedas de cinco.
Isso é que era bom... “não, não, são doze mil e quinhentos”, ripostou vigorosa, e eu apeguei-me ao preço anterior do proclamo, “mas, há bocadinho, eram só dez escudos...”, tentei a minha sorte, “eram, eram, antes de chover, mas agora chove mesmo...”, e esboçou aquele sorriso brando de quem tinha a vida a correr-lhe bem. E pus-me a cismar: a hora do negócio é só uma, é pegar ou largar...

1 comentário:

Gisela Gusmão disse...

Acho que não terá sido o guarda-chuva da fotografia a salvar o dono-cronista da chuvada lisboeta dos idos de 60s... Mas que a foto está engraçadíssima, ai isto está!