Viagens no Tempo, de Bento Sampaio
Afinal, sempre se arranja um tempo para que haja Primavera…
Sabe-se que é o tempo a companhia inseparável de todo o nosso sempre.
Se bom, todos se recreiam com a sua brandura, “que rico dia o de ontem, espectacular!”; se assim-assim, “vá que não vá, pelo menos não choveu…”; e se ruim, “não tem que saber, quando vira para o canto do ilhéu…” – olhem, é o que a mãe-natureza nos empresta.
No meu dentro e fora – rua abaixo, rua acima – um dia nunca igual ao outro, ontem azulado, hoje queria vestir-se de cinza – ainda assim de boa catadura – e ainda aquele focinho de cão, azedo e transtornado, sacudido de vento rijo e briguento, já se vê, corri para me abrigar debaixo de uma varanda, e nada demais do que uns respingos soltos. E então me apareceu o meu bom irmão Nuno, “o tempo é tanto pior visto do lado de dentro da janela” – e é.
Quando me toca a rebate a lembrança, vêm os meus em fileira, e obviamente cotejo a sua memória, “se fosse viva, hoje teria setenta anos”, cogitei na única e, dos três, a última andorinha a deixar-me só, sem o consolo de mais conversas de sangue.
Como é breve a infância e curta a mocidade… E tanto cuidado teve meu pai com aquela menina, “claro que pode, senhor Sampaio…”, acedeu o padre Leite ao seu pedido, e lá foi ela, a minha querida irmã Fátima, baptizada com água morna, como já o referi em tempos.
Pois foi-se ela num embalo íntimo de quem levava a alma chegada a si, segura do seu Destino, descansada com a prole que ficou no seu aquém de saudade, já os outros manos lhe seguiram na dianteira, abrindo caminhos de esperança para aquela andorinha que corria alvoroçada por chegar cedo ao seu Além e lá encontrar o abrigo almejado.
Com esta distância dos anos, sonhando com os meus na Terra dos Vivos, fico-me a cismar: felizes os que habitam a vossa Casa, que para sempre vos louvarão, e até a ave lá encontra abrigo e ninho para a sua descendência – Deus queira.
Ora, vir aqui tagarelar de gente calada, em pó desfeita, a alma entregue ao Criador, parece talvez uma fala desenxabida, despropositada, uma extraordinária falta de gosto. Mas o apego…
Agora, no meio dos frescores do tempo que corre, de aragens balsâmicas, de incensos inebriantes, agasalhando laranjeiras e limoeiros afogueados de viço, de jardins ornados de magnólias, jacintos, frísias, amores-perfeitos, ah, e de lírios do campo e orquídeas, e ainda de atalhos contornados de azáleas, tudo fervendo de vigor, que mais se pode querer dessa Mater?
Quem dera agora ouvi-las de viva voz a elas: de Florbela – não sei quem tantas pérolas espalhou… murmura alguém pelas quebradas fora, flores do campo, humildes, mesmo agora a noite os olhos brandos lhes fechou – e ainda o grito de Amélia – por isso te amo tanto, oh! Natureza, linda, potente, majestosa e forte, sempre nova na graça e na beleza.
E outras andorinhas vêm sempre chegando. Crescem alegres, saltam, riem, choram e cantam, dizendo coisas que a todos encantam. Não param esses nossos meninos, são eles a cópia fiel da tal gente calada, os tais que, desfeita já a natureza, alimentam outros sonhos, como se fora mais feliz quem menos sente.
Como eu, nos anos verdes, trepando nespereiras e laranjeiras, na linda quinta da nossa casa, tudo lhes serve para galgar muros, pendurando-se no que está mais à mão, e desaparecem de nossas vistas, que mais proezas têm pela frente – oxalá os nossos meninos se enfiem por veredas suavizantes.
Mas não posso esquecer-me do último Verão, ele num aceno derradeiro, o sol já cansado a acomodar-se muito mais cedo, os dias a minguarem, e ela, a natureza a esmorecer.
Mas havia de voltar a Mater naquele primor de requinte primaveril – uma Dama, aqui minha vizinha, folgando na sua Lomba da Maia –, a receber-me com flores atiradas sobre mim, numa sentida afeição, uma amenidade, uma tal singularidade como se me sentisse um virtuoso fidalgo num remoto principado.
Afinal, sempre se arranja um tempo para que haja Primavera…
Afinal, sempre se arranja um tempo para que haja Primavera…
Sabe-se que é o tempo a companhia inseparável de todo o nosso sempre.
Se bom, todos se recreiam com a sua brandura, “que rico dia o de ontem, espectacular!”; se assim-assim, “vá que não vá, pelo menos não choveu…”; e se ruim, “não tem que saber, quando vira para o canto do ilhéu…” – olhem, é o que a mãe-natureza nos empresta.
No meu dentro e fora – rua abaixo, rua acima – um dia nunca igual ao outro, ontem azulado, hoje queria vestir-se de cinza – ainda assim de boa catadura – e ainda aquele focinho de cão, azedo e transtornado, sacudido de vento rijo e briguento, já se vê, corri para me abrigar debaixo de uma varanda, e nada demais do que uns respingos soltos. E então me apareceu o meu bom irmão Nuno, “o tempo é tanto pior visto do lado de dentro da janela” – e é.
Quando me toca a rebate a lembrança, vêm os meus em fileira, e obviamente cotejo a sua memória, “se fosse viva, hoje teria setenta anos”, cogitei na única e, dos três, a última andorinha a deixar-me só, sem o consolo de mais conversas de sangue.
Como é breve a infância e curta a mocidade… E tanto cuidado teve meu pai com aquela menina, “claro que pode, senhor Sampaio…”, acedeu o padre Leite ao seu pedido, e lá foi ela, a minha querida irmã Fátima, baptizada com água morna, como já o referi em tempos.
Pois foi-se ela num embalo íntimo de quem levava a alma chegada a si, segura do seu Destino, descansada com a prole que ficou no seu aquém de saudade, já os outros manos lhe seguiram na dianteira, abrindo caminhos de esperança para aquela andorinha que corria alvoroçada por chegar cedo ao seu Além e lá encontrar o abrigo almejado.
Com esta distância dos anos, sonhando com os meus na Terra dos Vivos, fico-me a cismar: felizes os que habitam a vossa Casa, que para sempre vos louvarão, e até a ave lá encontra abrigo e ninho para a sua descendência – Deus queira.
Ora, vir aqui tagarelar de gente calada, em pó desfeita, a alma entregue ao Criador, parece talvez uma fala desenxabida, despropositada, uma extraordinária falta de gosto. Mas o apego…
Agora, no meio dos frescores do tempo que corre, de aragens balsâmicas, de incensos inebriantes, agasalhando laranjeiras e limoeiros afogueados de viço, de jardins ornados de magnólias, jacintos, frísias, amores-perfeitos, ah, e de lírios do campo e orquídeas, e ainda de atalhos contornados de azáleas, tudo fervendo de vigor, que mais se pode querer dessa Mater?
Quem dera agora ouvi-las de viva voz a elas: de Florbela – não sei quem tantas pérolas espalhou… murmura alguém pelas quebradas fora, flores do campo, humildes, mesmo agora a noite os olhos brandos lhes fechou – e ainda o grito de Amélia – por isso te amo tanto, oh! Natureza, linda, potente, majestosa e forte, sempre nova na graça e na beleza.
E outras andorinhas vêm sempre chegando. Crescem alegres, saltam, riem, choram e cantam, dizendo coisas que a todos encantam. Não param esses nossos meninos, são eles a cópia fiel da tal gente calada, os tais que, desfeita já a natureza, alimentam outros sonhos, como se fora mais feliz quem menos sente.
Como eu, nos anos verdes, trepando nespereiras e laranjeiras, na linda quinta da nossa casa, tudo lhes serve para galgar muros, pendurando-se no que está mais à mão, e desaparecem de nossas vistas, que mais proezas têm pela frente – oxalá os nossos meninos se enfiem por veredas suavizantes.
Mas não posso esquecer-me do último Verão, ele num aceno derradeiro, o sol já cansado a acomodar-se muito mais cedo, os dias a minguarem, e ela, a natureza a esmorecer.
Mas havia de voltar a Mater naquele primor de requinte primaveril – uma Dama, aqui minha vizinha, folgando na sua Lomba da Maia –, a receber-me com flores atiradas sobre mim, numa sentida afeição, uma amenidade, uma tal singularidade como se me sentisse um virtuoso fidalgo num remoto principado.
Afinal, sempre se arranja um tempo para que haja Primavera…
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